Como A Comunidade Quilombola Está Nos Lembrando Que A Luta Contra O Racismo Ambiental É Uma Luta Pela Justiça Climática


Resumo

Desde 2007, o rio Tatuoca, vital para a comunidade quilombola da Ilha de Mercês, em Ipojuca, nordeste do Brasil, tem sofrido o impacto crítico de uma barragem construída pelo Complexo Industrial Portuário de SUAPE. Essa barragem, planejada como temporária para o acesso ao estaleiro, interrompeu drasticamente o ecossistema do rio, devastando os manguezais e a subsistência da comunidade. Afetando predominantemente as mulheres que dependem desses manguezais para a pesca de subsistência, essa situação é um exemplo de racismo ambiental – uma comunidade marginalizada e historicamente oprimida que sofre o impacto dos danos ambientais. A resposta resiliente da comunidade envolveu mobilização, protestos públicos e ações legais, levando à reabertura parcial do rio em agosto de 2021. No entanto, sua luta continua, exigindo a restauração total e a responsabilização, destacando uma luta mais ampla pela justiça ambiental, racial e de gênero.

Falsa Solução Climática Que Afeta A Comunidade Quilombola

Em 2007, o Complexo Industrial Portuário de SUAPE, em Pernambuco, Brasil, iniciou um projeto com graves consequências: a construção de uma barragem de enrocamento sobre o Rio Tatuoca. Esse rio, que forma uma parte essencial de um complexo estuarino entre Cabo de Santo Agostinho e Ipojuca, não é apenas um curso d’água; ele é a força vital de várias comunidades de pescadores, principalmente da comunidade quilombola da Ilha de Mercês – descendentes diretos de pessoas escravizadas e historicamente oprimidas. Aqui, o rio Tatuoca é mais do que um recurso natural; é parte integrante de sua identidade cultural, uma fonte crucial de sustento e um meio de subsistência.

A construção da represa, especialmente perto da foz do rio, interrompeu radicalmente o delicado equilíbrio do ecossistema. O fluxo e o refluxo das marés, que antes eram o ritmo de vida da vegetação de mangue e da fauna que ela sustentava, foram alterados de forma irreconhecível. Esse transtorno ecológico levou à morte gradual dos manguezais, privando a comunidade quilombola da Ilha de Mercês e outros pescadores locais de sua principal fonte de alimento e renda.

Essa crise ambiental foi exacerbada pela existência prolongada da barragem. O que era para ser uma estrutura temporária se transformou em um bloqueio de 17 anos, sufocando o rio, seus manguezais e a fauna, bem como as comunidades que dependem deles. Essa ação do SUAPE, motivada por interesses comerciais para novos projetos no território quilombola, como refinarias de petróleo, terminais de minérios e estaleiros, aliada à negligência ou mesmo cumplicidade dos órgãos de fiscalização ambiental, evidencia uma tendência preocupante de racismo ambiental.

A expressão “Racismo ambiental” é um termo utilizado para descrever situações de injustiça social no meio ambiente em um contexto racializado, ou seja, em que comunidades pertencentes a minorias étnicas, como populações indígenas, negras e asiáticas, são particularmente afetadas. O termo denuncia que a distribuição dos impactos ambientais não ocorre de forma igualitária entre a população, sendo que a parcela marginalizada e historicamente invisibilizada é a mais afetada pela poluição e pela degradação ambiental. O conceito foi criado para descrever a forma como as populações mais pobres e marginalizadas são desproporcionalmente afetadas por impactos ambientais negativos, como poluição do ar, contaminação da água, inundações e desmatamento. Isso acontece porque essas populações geralmente têm menos poder político e econômico para evitar ou remediar esses impactos. 

A situação da comunidade quilombola da Ilha de Mercês em face da construção da barragem sobre o rio Tatuoca pela SUAPE é um exemplo claro. A construção e a presença prolongada da barragem não apenas alteraram fisicamente a paisagem, mas também infligiram graves danos ambientais que afetaram diretamente a vida e os meios de subsistência da comunidade quilombola. Esse não é um incidente isolado, mas parte de um padrão mais amplo em que afrodescendentes, povos indígenas e grupos economicamente desfavorecidos são frequentemente submetidos a níveis mais altos de risco ambiental do que seus pares mais ricos, geralmente brancos. Nesse caso, a decisão de construir e manter a barragem próxima ao rio Tatuoca, apesar de seus efeitos prejudiciais, reflete uma desconsideração sistêmica das preocupações ambientais e de saúde da comunidade quilombola.

Os efeitos adversos dessa negligência ambiental são sentidos de forma mais aguda pelas mulheres da comunidade. Enquanto os homens costumam pescar em mar aberto, são predominantemente as mulheres que se dedicam à pesca artesanal nas áreas de mangue do estuário. A destruição desses manguezais afeta diretamente sua dieta, renda e saúde em geral. Esse impacto com viés de gênero dos danos ambientais não apenas ressalta a interseccionalidade do racismo ambiental, mas também destaca como as mudanças ambientais podem exacerbar as desigualdades de gênero existentes. Para as mulheres da Ilha de Mercês, a degradação do Rio Tatuoca não é apenas um desastre ecológico; é uma ameaça existencial ao seu modo de vida, à sua saúde e ao seu patrimônio cultural.

Solução climática com justiça de gênero

A comunidade embarcou em uma campanha multifacetada para lidar com a grave injustiça ambiental causada pela construção da represa no Rio Tatuoca. Sua estratégia abrangeu uma combinação de defesa, conscientização pública e ação legal. Por meio de uma série de reuniões e audiências públicas, eles intensificaram os esforços para influenciar os órgãos de inspeção. Ao mesmo tempo, lançaram a campanha de comunicação “Rios Livres, Mangues Vivos”, que desempenhou um papel fundamental na conscientização do público sobre a questão. A pedra angular de sua abordagem foi o litígio estratégico, levando o caso aos tribunais para buscar justiça.

Esse esforço conjunto produziu resultados significativos. Em primeiro lugar, aumentou a conscientização e o envolvimento do público, chamando a atenção de forma generalizada para as injustiças ambientais enfrentadas pela comunidade. Em segundo lugar, estimulou respostas mais proativas dos órgãos públicos, principalmente do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública da União. Esses desenvolvimentos levaram a mudanças tangíveis no local. Em agosto de 2021, a empresa pública SUAPE iniciou a reabertura parcial da barragem, criando uma abertura de 34 metros na estrutura de mais de 170 metros. Essa ação proporcionou um alívio imediato, embora parcial, para o rio e iniciou a restauração do ecossistema de manguezal.

Apesar desse progresso, a comunidade reconheceu que a batalha estava longe de terminar. A comunidade continua a defender a reabertura total do rio, insistindo na remoção completa da barragem. Sua persistência rendeu frutos em uma audiência de conciliação, na qual garantiram um compromisso para a reabertura total do rio Tatuoca nos meses seguintes. Esse compromisso representou um marco significativo em sua luta de mais de 15 anos para restaurar o rio Tatuoca, aproximando a comunidade a uma grande vitória: a recuperação total do rio e a compensação pelos extensos danos materiais e morais sofridos ao longo dos anos.

Embora a reabertura parcial do rio seja um passo positivo, a comunidade continua firme em sua demanda pela reabertura completa e imediata do rio Tatuoca. A comunidade também busca responsabilizar o Complexo Industrial Portuário de SUAPE pelos danos irreversíveis causados por mais de 15 anos de obstrução.

Chamada à Ação

Nossa luta contra a barragem é mais do que uma questão local; é um microcosmo da luta global por justiça e equidade ambiental. Ela ressalta a necessidade urgente de financiamento climático que reconheça e apoie soluções climáticas com justiça de gênero e que abordem a justiça racial em nível local. O caso do Quilombo Ilha de Mercês não é isolado. Ele faz parte da luta global por justiça ambiental, racial e de gênero. Pedimos apoio e investimento em soluções reais que promovam a inclusão e abordem as desigualdades sistêmicas que perpetuam o racismo ambiental.

Fórum Suape – Espaço Socioambiental

A história do Rio Tatuoca e da comunidade da Ilha de Mercês destaca a necessidade urgente de financiamento climático que tenha como base a justiça racial e de gênero. O apoio financeiro poderia desempenhar um papel fundamental na restauração e preservação de ecossistemas vitais, como os manguezais do Rio Tatuoca, que são cruciais para a subsistência das comunidades locais, especialmente das mulheres. Esse financiamento é necessário não apenas para projetos de restauração ambiental, mas também para apoiar a defesa liderada pela comunidade e ações legais contra injustiças ambientais. Ao garantir que o financiamento climático seja justo em termos de gênero, reconhecendo os desafios e as contribuições singulares das mulheres nessas comunidades e liderando o trabalho na linha de frente, os esforços podem ser mais eficazes para lidar com o impacto desproporcional do racismo e da degradação ambiental sobre as mulheres e promover sua participação ativa na tomada de decisões e nas iniciativas de restauração ambiental.

Quem apoia essa solução climática com justiça de gênero?

Fórum Suape – Espaço Socioambiental é uma organização que atua junto às comunidades afetadas pelo Complexo Industrial Portuário de Suape (CIPS), no litoral sul de Pernambuco, apoiando-as por meio de ações pedagógicas, jurídicas e de visibilidade, buscando assim fortalecer sua capacidade de organização e influência política. 

Esta é uma história dentre muitas da rede da Global Alliance for Green and Gender Action (GAGGA), na qual mulheres, meninas, pessoas trans, intersexo e não binárias de comunidades locais e indígenas estão na vanguarda da luta pela justiça climática e ambiental contra falsas soluções climáticas. Chegou a hora de investir em soluções climáticas transformadoras lideradas por mulheres, meninas, pessoas intersexo, não binárias e trans e parar o investimento em falsas soluções climáticas. Apoie a defesa dos direitos humanos e invista na liderança das mulheres em soluções climáticas com justiça de gênero!

GAGGA will be present at CSW68 between March 11 and 22, 2024. For collaboration opportunities and to learn more, contact Noemi Grütter, GAGGA Co-Coordinator, Responsible for Advocacy and Collaborations: n.grutter@fondocentroamericano.org . For more information about this article and the work of Fórum Suape Espaço Socioambientali’s and to get in touch directly, visit https://forumsuape.org.br/ , @Forumsuape on Twitter or Forumsuape@forumsuape.com.br

This story and GAGGA’s actions at CSW68 are supported by  Global Affairs Canada  and the  Dutch Ministry of Foreign Affairs . Your contribution has been instrumental in GAGGA’s efforts to highlight critical voices and issues at CSW68.


Related Post

Anamika Dutt's picture with the text, "welcoming Anamika Dutt, GAGGA's PMEL Officer"

Welcoming Anamika Dutt As GAGGA’s Planning, Monitoring, Evaluation & Learning (PMEL) Officer!

Anamika Dutt is a feminist MEL practitioner from India. Anamika believes that stories of change and impact are best heard…

See more

Bringing Local Realities to Board Level: GAGGA and Both ENDS Partners at the GCF B38 in Rwanda

Last week Both ENDS participated in the 38th Board Meeting of the Green Climate Fund in Kigali, Rwanda, together with…

See more

We Women Are Water – Call To Action To Support And Finance Gender Just Climate Action

Gender just climate action and solutions are in urgent need of your support Women, girls, trans, intersex, and non-binary people…

See more

Subscribe to our newsletter

Sign up and keep up to date with our network's collective fight for a gender and environmentally just world.